Ainda podemos mudar a História, mesmo que mais de 400 anos depois....
O “Sermão do Bom Ladrão” foi
proferido pelo Pe. Antônio Vieira em 1655, na Igreja da Misericórdia, em
Lisboa, perante Dom João IV e os dignitários do reino, juízes,
ministros e conselheiros. Talvez valha a pena relembrá-lo para verificar
se houve progressos em assunto de tamanha envergadura como é o roubo! A
homilia se prolongou durante horas. Permito-me, por isso, trazer apenas
alguns de seus tópicos.
«Navegava Alexandre em uma poderosa
armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia. E como fosse trazido à sua
presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores,
repreendeu-o muito de andar em tão mau ofício. Porém ele, que não era
medroso nem lerdo, respondeu assim: “Basta, senhor, que eu, porque roubo
em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois
imperador?”. Assim é: o roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza:
o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os
Alexandres.
O ladrão que furta para comer, não
vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, são outros
ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera; os quais, debaixo do
mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem São Basílio
Magno. Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou
espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa. Os ladrões que
mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis
encomendam os exércitos e legiões, o governo das províncias, a
administração das cidades, os quais já com manha, já com forças, roubam e
despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam
cidades e reinos. Os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor
nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e
enforcam.
Encomendou el-rei Dom João a São
Francisco Xavier o informasse do estado da Índia. E o que o santo
escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo “roubar”
na Índia se conjugava por todos os modos. A frase parece jocosa em
negócio tão sério, mas falou o servo de Deus como fala Deus, que, numa
palavra, diz tudo. O que eu posso acrescentar, pela experiência que
tenho, é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também das
partes de aquém se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos
os modos o verbo “roubar”, porque furtam por todos os modos da arte.
Tanto que lá chegam, começam a
furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos
práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar
tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o império, todo ele
aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo
mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam e, para que mandem todos,
os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque
desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos
delas, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu
pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a
sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo
modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, usam de potência.
Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes
compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o
furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão
continuando os furtos.
Estes mesmos modos conjugam por
todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas
os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e
consciência.
Finalmente, nos mesmos tempos, não
lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, mais-que-perfeitos, e quaisquer
outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de
furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta
rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para
furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as
miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram
feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas
ficam roubadas e consumidas...».